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Sempre achei que doações deveriam ser anônimas, mas eu estava errado

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05 de novembro de 2020

“Doar dá mais prazer do que ganhar”.

A frase foi dita por mim ao meu filho em meio ao discurso que preparei por ocasião do seu Bar Mitzvá, cerimônia que marca a transição para a maioridade religiosa judaica, aos 13 anos, realizado no dia 10 de março.

Mal sabíamos que, apenas três dias após este marcante evento, estaríamos partindo para uma situação de distanciamento social, na qual ainda nos encontramos, sem muitas perspectivas de retorno, e que o novo coronavírus alcançaria rapidamente os quatro cantos do planeta, colocando bilhões de pessoas em risco – diretamente, pelo contágio, ou indiretamente, devido à acentuação da pobreza decorrente da perda de empregos e depreciação da renda.

Muito se fala sobre pessoas vulneráveis à COVID-19, em especial sobre as idosas ou aquelas com alguma comorbidade. Menos se diz sobre outros grupos ameaçados pelas consequências da pandemia, tais como aqueles que vivem de bicos ou caridade às ruas das grandes cidades, refugiados, ex-detentos ou transexuais. Em tempos normais, o mundo já não lhes é cordial; nestes novos, talvez já não haja mais mundo. Por isso decidi escrever.

Quem me conhece de maneira mais íntima vai estranhar os parágrafos a seguir. Embora sempre existentes, as ações sociais de minha família jamais foram expostas. Sempre achei que a filantropia deveria ser exercida em sigilo. Sua divulgação soava vaidosa e, portanto, tratava-se de um comportamento reprovável.

Não que eu fosse o único, pelo contrário. A pesquisa Doação Brasil, encomendada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), mostrou que 84% dos brasileiros acham que quem doa não deve falar a respeito, ao que Paula Fabiani, diretora do IDIS, respondeu: “Como é que a gente vai ter uma cultura de doação desenvolvida se a gente não deve falar que doa? Esse é um entrave cultural que precisa ser vencido para a gente realmente conseguir ter uma cultura de doação disseminada”.

A exposição ainda é, para mim, um grande desafio. Mas fui convencido de que o exemplo também contagia. Assim, se por meio deste texto eu conseguir inspirar uma única pessoa a seguir passos semelhantes, o esforço terá valido à pena.

DO ANÚNCIO NAS REDES SOCIAIS AOS CRITÉRIOS PARA A DISTRIBUIÇÃO DOS RECURSOS

Pois bem. Estávamos no início de abril quando, no luxo de nosso confinamento, já não era mais possível manter-nos inerte enquanto os mais vulneráveis passavam despercebidos em um silencioso sofrimento. Precisávamos agir.

Assim, minha esposa e eu, com o intuito de identificar líderes comunitários em âmbito nacional, postamos o seguinte anúncio em nossas redes sociais:

Amigos próximos desencorajaram a atitude, alertando para os riscos de fraudes. Porém, dada a excepcionalidade da situação, avaliamos que seria a maneira mais eficaz de fazer a ajuda chegar onde desejávamos.

E foi reconfortante descobrir que estamos, de fato, cercados de pessoas que fazem o bem. Recebemos dezenas de mensagens com indicações validadas a partir de experiências pessoais em projetos sociais em áreas de extrema pobreza e sofrimento agudo.

Telefonei a cada um deles enquanto tentava definir critérios que pudessem orientar a distribuição dos recursos.

Ouvi muitas histórias difíceis que contribuíram para reforçar a percepção de viver em uma bolha irreal, quase surreal.

Em um final de tarde, minha esposa e eu traçamos uma difícil linha de corte: nesta ação, queríamos ajudar exclusivamente as famílias que haviam perdido sua condição de trabalho e renda subitamente por conta da pandemia. Isso significava reconhecer que teríamos que negar auxílio, por exemplo, a famílias que já há mais tempo se encontravam sem renda; ou a idosos doentes ou mesmo a crianças famintas. A impotência diante desta situação e a necessidade de fazer escolhas significaram um duro soco no estômago.

IMIGRANTES HAITIANOS DO BAIXO GLICÉRIO, EM SÃO PAULO

Inicialmente, selecionamos dez famílias de imigrantes haitianos que habitam o Baixo Glicério, em São Paulo. O trabalho informal que praticavam como ambulantes nas ruas do centro foi interrompido na mesma velocidade em que a fome chegou. Reagimos enviando cestas básicas a cada uma destas famílias, distribuídas através da Dona Eva.

UM ABRIGO PARA CRIANÇAS EM PIRITUBA

Em seguida, entramos em contato com um abrigo em Pirituba. Naquela semana, o projeto, que estava fechado, teve que ser subitamente reaberto para acolher quatro crianças de uma mesma família, a pedido do Conselho Tutelar, justamente em um momento crítico para a obtenção de recursos.

Conforme havíamos estabelecido, as necessidades desse abrigo não estavam enquadradas nesta nossa ação social, e a sensação de ter que declinar o auxílio foi dolorosa. Por outro lado, a Daniela, que supervisiona o projeto, nos ajudou a identificar cinco famílias que habitam o entorno do local, se enquadravam em nosso quesito e, foram, portanto, atendidas, também com cestas básicas.

VILA DAS MALVINAS, GUARULHOS-SP

Depois, estabelecemos um contato com moradores da Vila Malvinas, em Guarulhos, o que não podia ser mais inspirador. A conversa foi com o Ricardo, que consegue se manter feliz e sorridente mesmo nas horas mais difíceis. Ricardo gosta de conversar, e contou em detalhes como lidera sua comunidade.


Ricardo

Disse também que a Vila Malvinas fica bem próxima ao aeroporto de Cumbica, e grande parte de seus habitantes “faz bico” em serviços relacionados ao local, como carpintaria, pintura ou limpeza. Com os voos suspensos e o aeroporto paralisado, dezenas de famílias ficaram sem renda.

Na semana em que conversamos, foi registrada a primeira vítima da COVID-19 em sua comunidade: uma senhora de sessenta e poucos anos, muito querida por todos. Haviam passado também por uma situação inusitada: dezenas de pessoas de outras regiões que, tendo perdido o emprego, não conseguiam mais pagar seus aluguéis, invadiram as Malvinas, o que deu certa confusão até a intervenção da polícia militar.

Do Ricardo recebi quase 350 fotos da comunidade e seis vídeos de agradecimento à nossa distribuição de cestas básicas às 50 famílias de lá. Choramos em todos eles. Um, em especial, foi muito marcante para a minha esposa: o Ricardo contando uma fábula para cerca de 40 crianças, e era justamente o livro que mais a marcou quando criança: “O Pote Vazio”.

VILA BRASILÂNDIA, SP

Um engenheiro ambiental que conheci pelo Twitter (quem diria que o Twitter teria essa função!) me apresentou ao Claudinho, líder comunitário na Vila Brasilândia, em São Paulo, que desenvolve um trabalho social na favela do Iraque e na favela do Pó – os nomes, por si só, já configuram o cartão de visitas do lugar.

Com uma população estimada em 250 mil pessoas, composta sobretudo por negros e nordestinos, possui um dos menores IDHs da cidade e alto índice de violência. A Vila Brasilândia concentra o maior número de mortos pela COVID-19 entre todos os distritos da capital.

Claudinho conseguiu identificar 80 famílias que se desestruturaram em função da crise, para as quais destinamos cestas básicas. Dias mais tarde, e no momento em que eu escrevia este texto, contou que a distribuição da ajuda, bem como a de outros apoios que recebeu, foi noticiada no jornal do SBT: assista aqui.

DAS DEZENAS ÀS CENTENAS

Concluímos a primeira semana de nossa ação social com 145 famílias atendidas. Considerando que cada família possui, em média, 4 integrantes, foram 580 pessoas beneficiadas.

Se em nossos primeiros auxílios, contávamos os assistidos nos dedos das mãos, as assistências seguintes já eram contabilizadas às dezenas. Mas havia chegado a hora dos números ainda maiores. E de ampliar as ações para além do estado de São Paulo.

Através de meus contatos do mundo ESG (conceito de incorporar questões socioambientais no mundo de investimentos), conheci a Bárbara, delegada do Conselho Nacional de Direitos Humanos, presidente da Comissão local de Cajazeiras (Salvador – BA) e presidente do projeto social “Um mais Um é Sempre Mais que Dois”, focado em minorias.

Ela assiste especialmente à população LGBT, fundamentalmente transexuais, mas também mulheres egressas do sistema prisional, muitas delas ainda usando tornozeleiras eletrônicas.

Bárbara é casada com sua companheira há 9 anos, mas parece devota às cerca de 1.500 pessoas que ajuda. Ela é capaz de contar histórias cheias de detalhes de cada uma e se emociona quando fala das ex-presidiárias e das dificuldades que têm para se reintegrar à sociedade.

Entregamos ali 600 cestas de alimentos, beneficiando cerca de 2.400 pessoas, dentre as quais ex-esposas de presidiários mortos no cárcere, travestis e um cego. A distribuição atingiu até mesmo o pessoal do terreiro, que normalmente não passa necessidades, mas que neste momento não tem mais sustento.

JARDIM PERI, SÃO PAULO

Também as redes sociais me conectaram com uma pessoa que faz parte de um movimento social chamado Conexão Favela, que, por sua vez, tem como objetivo a capacitação em tecnologia dos jovens da comunidade. Um dos bairros de forte atuação desta ONG é o Jardim Peri, na zona norte da capital paulista, mais conhecido pelo funk e pelo futebol. De lá saíram MCs de sucesso, e também o Gabriel Jesus, ídolo da seleção brasileira de futebol. Mas não precisa ser craque para saber que, entre os 80 mil habitantes do bairro, pouquíssimos se destacarão e a realidade será dura para a grande maioria.

Com apoio do Renato, conseguimos identificar 300 famílias que estão sofrendo os efeitos da perda de renda por conta da pandemia. Atendemos a todas. Em tese, mais 1.200 pessoas atendidas com pacotes de alimentos.

MORRO DO ALEMÃO, RJ

Ainda tínhamos fôlego para um pouco mais. Procurei um colega de profissão “americano-carioca” que conheci recentemente. Meu respeito por ele, que já era grande, aumentou quando notei seu contínuo envolvimento em causas sociais, em especial num projeto fantástico chamado “Abraço Campeão”, que atua no famoso Morro do Alemão, no Rio de Janeiro.

Ainda que o Morro do Alemão dispense apresentações, os números impressionam. Ocupa o desonroso 126º lugar no ranking do IDH entre os bairros do Rio de Janeiro – ou seja, a última colocação. No ano passado, ficou em segundo lugar em número de tiroteios no estado. Também ocupa o terceiro posto em quantidade de reclamações por falta de água e, lá, o novo coronavírus chegou com toda a força: já somam mais de mil, o número de casos suspeitos.

Alan, o simpático líder comunitário, conseguiu identificar 300 famílias que se enquadravam no quesito de vulnerabilidade que propusemos.

As entregas a cada uma delas foram feitas por meio de mototáxis, que conseguiam levar as cestas básicas aos locais mais improváveis.

BALANÇO

O nosso “balanço social” destas duas semanas soma 1.345 famílias assistidas, ou, em tese, 5.380 pessoas, em sete diferentes localidades.

Gratidão à empresa de alimentos cearense M. Dias Branco, com quem tenho relacionamento há 16 anos e que, neste momento, além de sua maravilhosa ação social em campanhas junto ao Banco de Sangue, ainda me ajudou na distribuição dos alimentos em larga escala. Agradeço também ao meu amigo Daniel Douek, foi dele o “empurrão” para publicar esta história, e é dele também a revisão do texto, que ficou mais claro e organizado através de seus (como sempre) brilhantes retoques.

Nossos filhos mais velhos foram integralmente envolvidos no processo, desde o início. Eles ajudaram a pensar quais alimentos não perecíveis seriam mais adequados a compor as cestas, e acompanhavam as ações através das fotos e filmes que nos eram enviadas diariamente pelos respectivos líderes comunitários. O mais novo, com menos de seis meses de vida, veio ao mundo em um momento cheio de desafios, mas bastante solidário – e é com este espírito que queremos formá-lo.

Se, por um lado, experimentamos a sensação de termos contribuído para aliviar o sofrimento de algumas pessoas, por outro temos plena consciência de que os problemas nacionais têm dimensões exponencialmente maiores. A angústia de (não) saber como será a vida em algumas semanas me motivou a contar esta história, pedir a sua atenção e torcer para que te inspire a fazer algo semelhante.

A mensagem que tentei transmitir ao meu filho em seu Bar Mitzvá, vivi na prática poucos dias depois. “Doar dá mais prazer do que ganhar”. A experiência destas semanas servirão para que ele e seus irmãos jamais esqueçam do que aprenderam e consolidem os seus valores.

Fabio Alperowitch
Fundador da FAMA Investimento
Formado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), com cursos de extensão na Universidade da Califórnia (Berkeley) e na Harvard Kennedy School. Iniciou sua carreira na Procter & Gamble e fundou a FAMA Investimentos em 1993, onde é responsável pela gestão do fundo de ações de empresas brasileiras, focado em companhias com responsabilidade social e aderentes às boas práticas de ESG. Desde o início, o fundo gerido pela FAMA Investimentos acumula um retorno de 21% ao ano. No terceiro setor, é diretor do Instituto FAMA, do Instituto Brasil Israel, do Instituto Totós da Teté, conselheiro da WWF Brasil, da GRI Brasil do Capitalismo Consciente Brasil e do Museu Judaico. É também membro do grupo de trabalho do TNFD. Foi membro do Conselho de Administração de diversas companhias de capital aberto. Possui a certificação CFA – Chartered Financial Analyst