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Do viés inconsciente ao racismo estrutural

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30 de julho de 2020

Estamos vivendo um grande momento de reflexão. O isolamento induzido e o rompimento do status quo da nossa rotina fez a sociedade se tornar mais reflexiva: parece que todos resolveram parar e observar tudo o que acontece de fato no nosso planeta. Com isso, vários assuntos vieram à tona, como conflitos pessoais e políticos, discussões econômicas e principalmente todas as desigualdades que existem por aí.

O racismo foi uma delas. Com certeza você acompanhou o que aconteceu com o George Floyd lá nos Estados Unidos e como o caso desencadeou uma grande onda global, impulsionando uma série de movimentos. Provavelmente, isso também fez você abrir os olhos para a realidade do Brasil, para os inúmeros casos semelhantes de violência que acompanhamos por aqui, além das múltiplas situações cotidianas de racismo, as quais, muitas vezes, passam despercebidas – ou são normalizadas pela população – pois, afinal de contas, a máxima “não existe racismo no Brasil” sempre esteve no vocabulário popular.

Acontece que, sim, somos uma nação racista. Os números evidenciam que, apesar do nosso país ter a maioria de sua população composta por negros ou pardos, as oportunidades não chegam nem perto de serem as mais favoráveis a este grupo. Estudos mostram que essa parte da população é também, em sua maioria, composta por desempregados, vítimas de violência policial, moradores de regiões desassistidas, presidiários, informalidade, e assim vai.

No ambiente corporativo, por exemplo, segundo estudo do Instituto Ethos, nas 500 empresas de maior faturamento do Brasil, os homens negros representam menos de 5% dos cargos de executivos ou conselhos de administração. Outro dado que chama atenção é o de que, apesar de 56% dos chefes de família serem mulheres negras, nas nossas maiores empresas nenhuma mulher negra ocupa algum cargo de alta gestão.

Por que será que isso acontece?

Muito se atribui ao conceito de racismo estrutural, o qual acaba sendo um sistema abrangente de preconceito racial entre instituições e sociedade. Por isso, determinado grupo acaba sendo mais privilegiado que outro de uma forma bastante enraizada. Além de toda a concepção histórica da sociedade e o sistema econômico que construiu boa parte dos países, a neurociência também ajuda a nos explicar essa situação.

O chamado viés inconsciente é um processo em que são associados estereótipos ou atitudes em relação a um grupo de pessoas sem percepção consciente, o que muitas vezes resultam em ações e práticas contrárias às intenções ou valores ditos explícitos. Em determinados momentos, isso pode gerar tomadas de decisões injustas ou tendenciosas, como, por exemplo, em processo de contração ou promoção de cargos e salários, atendimento e acesso a serviços públicos, cuidados médicos, etc.

O gráfico abaixo, adaptado do norte-americano National Equity Project de Kathleen Osta e Hugh Vasquez, nos ajuda a entender um pouco mais a relação entre o viés inconsciente e o racismo estrutural:

História, políticas e práticas

O conceito de raça foi criado para justificar a escravização de pessoas da África, força econômica de muitos países, especialmente do Brasil. A justificativa de que o negro era uma raça inferior e menos humana foi o que potencializou a escravidão por centenas de anos, além das narrativas nacionais (ideologia e sistema de crenças) justificarem os maus tratos e a desigualdade. Inclusive, um conjunto de políticas e práticas foram criadas para consolidar e proteger o poder econômico, social, cultural e político de maneira vantajosa para as pessoas brancas ampliando a desvantagem para a população negra.

Resultados desiguais e disparidades sociais

Desigualdades oriundas de políticas públicas e impactos nas áreas da saúde, habitação, emprego, educação e expectativa de vida reforçam as crenças e ideologias de supremacia racial, narrativa dominante que utiliza essas desigualdades como evidência da superioridade de um grupo em relação a outro.

No caso do Brasil, durante e depois do período da escravidão, diversas iniciativas enfatizaram e representaram a supremacia racial, como a primeira lei da educação, que proibia negros de irem à escola, a Lei das Terras, que vetava o direito à propriedade, e a Lei dos vadios e capoeiras (lançada pós Abolição), a qual decretava que pessoas perambulando pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, seriam presas.

Ao mesmo tempo, o país começou uma grande discussão sobre a necessidade de um branqueamento da população – já naquela época, de maioria negra, era defendida a tese de que depois de várias gerações de miscigenação entre brancos e negros, a raça negra iria progredir culturalmente e geneticamente até um possível desaparecimento. Nesse período houve grandes incentivos do governo brasileiro à vinda de europeus para cá, como doações de terras e suporte financeiro.

Associações e suposições

Somos impactados por uma narrativa dominante sobre raça (família, mídia, sociedade) juntamente com arranjos estruturais racializados – e com resultados diferentes por raça. A sociedade recebe diferentes estímulos capazes de a fazer acreditar no fato de que negros são inferiores – já que, constantemente, negros são observados em posições inferiores em que realizam funções que remetem à servidão. Isso acontece de maneira consciente e inconsciente.

Além disso, cargos e posições de destaque, sejam na televisão, nos jornais ou na política, têm pouca representatividade negra – basta olhar para a estética escolhida nos personagens das novelas, por exemplo. O ideal de beleza reproduzido nos meios de comunicação em massa também reforça esse tipo de estereótipo.

Da mesma forma que a neurociência traz um aprendizado sobre o viés inconsciente, é possível caminhar para uma solução. O nosso cérebro, sendo um organismo vivo, continua a crescer e se desenvolver, mesmo na idade adulta. Embora seja difícil evitar absorver mentalmente alguns desses estereótipos negativos, as associações e os preconceitos que estão implícitos dentro de nossas mentes são sim maleáveis. Isso significa que é possível mudar o nosso modelo mental, construindo associações diferentes, as quais, consequentemente, irão gerar novas formas de agir, estimulando a inclusão, equidade e o respeito.

O conhecimento é uma das principais formas de evitar o preconceito e, mais importante ainda, entender tudo o que influencia nossos comportamentos e atitudes. Trazer à consciência todas estas questões potencializa a discussão e a conversa sobre o assunto dentro de casa, numa saída com os amigos ou no trabalho, aprofundando o debate e construindo um pensamento mais questionador.

Como cidadãos, é quase mandatório conhecer mais sobre o surgimento das desigualdades em nosso país – especialmente as raciais -, bem como entender o porquê desse panorama continuar e se perpetuar. Como líderes, devemos ter a capacidade de confrontar a história e sua contribuição para o enraizamento do racismo estrutural por aqui para, só assim, sermos capazes de estimular a criação de comunidades e organizações onde todos possam ter acesso às oportunidades necessárias para prosperar.

Gustavo Loiola
Especialista em Administração e Negócios Internacionais
Gustavo Fructuozo Loiola é Mestre em Sustentabilidade e Governança Corporativa pelo ISAE/FGV, especialista em Administração e Negócios Internacionais e graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Paraná. Se especializou em Inovação e Empreendedorismo pela Universidade da Califórnia (USA), Gerenciamento de Projetos pela George Washington University (USA), além de imersões em Smart Cities na cidade de Nantes na França e Negócios para a Base da Pirâmide pela Universidade de Externado da Colômbia. Desde 2014, como colaborador do ISAE/FGV, está envolvido com projetos de expansão internacional, desenvolvimento de startups e novos negócios, e coordena a área de Sustentabilidade da instituição, responsável pela relação com programas e parcerias internacionais das Nações Unidas como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o PRME e o Pacto Global.