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A apropriação da imagem do vulnerável

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18 de junho de 2020

Trabalhei na área de atendimento de uma empresa em que um colega meu, branco, atendia com frequência o mesmo cliente estrangeiro, sempre pela manhã. Eu sabia disso porque este colega era uma pessoa que falava alto, ficando difícil simplesmente ignorar suas conversas. Num certo dia ele não chegou no horário de costume para o expediente e a ligação sobrou pra mim.

Mais tarde, quando ele chegou, viu o papelzinho com o recado que continha os detalhes das informações que o cliente estava aguardando em cima da mesa. Ele levantou os olhos e perguntou quem havia escrito o recado e deixado na mesa dele. Quando eu disse que fui eu, com tom de surpresa, ele questionou mais uma vez:

– Foi você?

Eu afirmei novamente que havia sido eu. Neste momento o vi olhando com certa dúvida para o nada e, quando poderia apenas ficar quieto, me questionou mais uma vez:

– Mas você atendeu como?

De todas as pessoas que eventualmente realizavam o mesmo tipo de atendimento, por qual razão ele somente questionou a capacidade da única mulher negra da equipe?

Uma das autoras nigerianas mais famosas da atualidade, chamada Chimamanda Ngozi Adichie, escreveu, naquele que passou a ser um de seus textos mais populares, O perigo de uma história única:

“Eu venho de uma família nigeriana convencional, de classe média. Meu pai era professor. Minha mãe, administradora. Nós tínhamos, como era normal, empregada doméstica, que frequentemente vinha das aldeias rurais próximas. Quando eu fiz oito anos, arranjamos um novo menino para a casa. Seu nome era Fide. A única coisa que minha mãe nos disse sobre ele foi que sua família era muito pobre. Minha mãe enviava inhames, arroz e nossas roupas usadas para sua família. E quando eu não comia tudo no jantar, minha mãe dizia: ‘Termine sua comida! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não tem nada?’. Então eu sentia uma enorme pena da família de Fide. Então, num sábado, nós fomos visitar a sua aldeia e sua mãe nos mostrou um cesto com um padrão lindo, feito de ráfia seca por seu irmão. Eu fiquei atônita! Nunca havia pensado que alguém em sua família pudesse realmente criar alguma coisa. Tudo que eu tinha ouvido sobre eles era como eram pobres. Assim, havia se tornado impossível, pra mim, vê-los como alguma coisa além de ‘pobres’. Sua pobreza era minha única história sobre eles.”

A semelhança entre a história pessoal que contei e o que Chimamanda relata está nas surpresas: nas diversas situações cotidianas em que o racismo acontece constantemente e as pessoas, repetidas vezes, se surpreendem quando alguém negro se mostra contrário a uma ideia preconcebida, uma estatística ou um senso comum. Somente quem sofre com essas reações compreende o poder destes pequenos e certeiros golpes em nossa autoestima.

Já que os eventos atuais mostram muitas pessoas nas últimas semanas que parecem ter descoberto a existência do racismo no país e, com isso, estão afoitas para contribuir de alguma forma para o antirracismo, pode ser interessante aproveitar este ensejo por mudanças para refletir a respeito das formas como a ausência de conhecimento é nociva e porque ao abraçar causas devemos estar cientes do impacto de nossas ações e de quais são os lugares a serem ocupados dentro disso.

Para isso, gostaria de fazer uma reflexão a respeito da importância de compreender suas motivações ao decidir pelo voluntariado.

Um personagem comum

Corriqueiramente acompanhamos em nossas redes sociais alguém que, em um dado momento, alcançou sua “elevação espiritual” visitando algum país africano para a realização de trabalho voluntário com crianças carentes, o que, obviamente, o fez “enriquecer enquanto ser humano”.

Evidentemente, tudo isso pode acontecer a qualquer pessoa que se disponibilize para o voluntariado e, ainda, deve-se acreditar no altruísmo que envolve sair do conforto de sua casa para atravessar o oceano e ajudar os mais necessitados, os quais possuem uma cultura completamente diferente e vivem em condições precárias. Certo?

De maneira geral, sim. Mas dependendo da real motivação é necessário fazer um alerta.

É inegável que a popularização do voluntariado impulsione a diminuição da desigualdade e promove oportunidades para todos os lados. No entanto, existe uma falha possível e muito comum por parte do voluntário quando este se esquece dos reais propósitos das ações humanitárias. Porque, além de todas as dores óbvias causadas pelo racismo, frequentemente a população negra é, ainda, vítima da vaidade alheia dos que buscam promoção pessoal às custas do sofrimento de pessoas em situação de fragilidade para contabilizar likes.

Essas pessoas fazem parte de um arquétipo bem específico e corriqueiro. Um tipo de personagem que acaba por veementemente se manifestar sobre questões de temática racial com suposta propriedade, mesmo que, de fato, não a tenha. Esta figura é o salvador branco e acredito ser importante salientar as dimensões que suas ações podem alcançar com relação à imagem das pessoas negras. Isso pode se dar em vários momentos e espaços, mas costumam ser bem recorrentes no voluntariado, com especial fetichização direcionada a toda amargura que pode vir de uma criança negra.

Quais os efeitos do “salvador branco”?

É preciso ter cuidado para que, por falta de senso e conhecimento, estes agentes não deturpem o sentido de todo o trabalho e acabem reforçando estereótipos – e, por isso, faz-se necessário conscientizar sobre os efeitos da retratação vulgar de determinadas realidades. É, de fato, muitíssimo comum o compartilhamento de fotografias que evidenciam situações em que o voluntário branco está cercado por pessoas negras (geralmente crianças) que estão passando por algum tipo de necessidade, como em situação de extrema pobreza, completamente expostas.

Constrói-se um personagem heroico branco, rouba-se a imagem de uma pessoa em situação de vulnerabilidade e é como se esta pessoa passasse a ser coadjuvante da própria luta, ainda que deva ser a razão das ações voluntárias.

Sabemos que não há nada demais em criar boas lembranças e registrar momentos durante estas experiências, mas quais os impactos de dividir com a sua rede social estas imagens tão cheias de significados?

A postagem de uma simples foto de um “salvador” posando entre os supostos “resgatados” (muitas vezes são pessoas que estão sujas, em hospitais, orfanatos, etc.) não colabora beneficamente com aquele grupo e pode se sobressair ao propósito real do que poderia ser um belíssimo trabalho.

Uma imagem como esta resume uma população inteira à sua miséria, como se uma situação definisse quem todas estas pessoas são. Trazendo este cenário para nossa realidade, nosso contexto e nossa vida privilegiada: se um desconhecido fotografar, sem consentimento, o filho, menor de idade, de uma outra pessoa num lugar público, com certeza trará desconforto aos pais. Até por isso, um jornal não publica a foto de uma criança sem autorização dos pais ou representante legal.

Então, o que permite que uma pessoa se aproprie da imagem de uma criança preta na África para compartilhar em suas próprias redes sociais, com legendas que enfatizam as palavras “beleza”, “vida real” e “amor”, quando, na realidade, estão vazias de sentido e normalizam a população negra como agente secundário da própria história?

Levando em consideração a viralidade de uma fotografia postada numa rede social de fotos, Instagram, é necessário chamar a atenção para o desrespeito com relação ao outro e, mais importante, porque a esse outro a própria imagem não pertence. Não se sabe quem são as pessoas nestas fotografias, o que elas fazem e quais as suas histórias – sabe-se apenas que são africanos passando por necessidade. Não se sabe nem de qual país, apenas seu continente.

Ou seja, descaracterizam estas pessoas enquanto indivíduos, reiterando o senso comum. Esse combo de imagens sem permissão de uso é apenas mais um roubo e apropriação da população negra.

É crucial reforçar que isso tudo não é sobre brancos não poderem se disponibilizar a ajudar a população negra, seja na África ou em qualquer outro lugar. Não é sobre quem ganha com uma postagem como esta, mas sobre quem perde com ela.

Qual a razão em publicar este tipo de conteúdo, o qual dá a impressão de um povo sempre precisando ser salvo sem mais nada que vá além disso? Será que as pessoas retratadas nestas imagens querem ter seus rostos expostos dessa forma e sob estas condições? Se temos o discernimento para compreender tudo isso, entender os impactos, sobre tudo no subconsciente, faz sentido publicar algo assim, tão invasivo? O que é devolvido para a pessoa retratada? Carinho? Um contato posterior? Uma conversa? Ela sabe a razão daquele registro? Você gostaria de ser retratado numa situação em que nem possui forças para defender-se de um clique?

Voltemos ao começo deste texto. O que faz de meu colega questionar minha capacidade, quando nunca fez algo semelhante com qualquer outra pessoa no mesmo ambiente de trabalho? O que, na cabeça dele, diz que é tão absurdo que eu tenha aprendido o básico de uma língua estrangeira, o suficiente para poder compreender uma conversa mínima? O que fez de Chimamanda enquanto criança jamais ter pensado que uma família, ainda que pobre, não pudesse possuir talento criativo?

É a mesma história que conta o “salvador branco”. Que nós, negros, sempre estamos passivamente aguardando que alguém nos resgate, nos colocando na posição de incapazes de agir por conta própria.

Tudo isso resumido em apenas em uma foto.

Ana Esperança
Analista Sênior de Compliance
Jornalista formada pela Unibrasil, seu gosto pelas artes a levou a estudar também Cinema na FAP e a transitar pelo audiovisual como Produtora. Atualmente, trabalha com Compliance, na área de Governança. No momento, enquanto mulher, preta e entusista da diversidade, direciona seus estudos para especializar-se em Direitos Humanos e Responsabilidade Social.