BLOG

CANCELAMENTO.COM.BR – o esmagamento social no ambiente virtual

Compartilhe agora mesmo:

Facebook
LinkedIn
WhatsApp
18 de fevereiro de 2021

O comportamento humano é o foco de diversos estudos através da história. Nos Estados Unidos da América dos anos 60, Edward Diener e seus colegas buscavam compreender o comportamento infantil dando a elas o que mais gostavam: doces de Halloween.

O estudo de Diener aconteceu em 27 casas nas cidades de Seattle e Washington e, através de três variáveis principais (anonimato versus não anonimato; sozinho versus em grupo; grupos com ou sem uma criança que tomaria responsabilidade pelos atos), investigaram se as crianças roubariam ou não os doces dentro de cada uma das circunstâncias, se tivessem oportunidade.

As evidências do estudo apontam para dois principais resultados: 1- O anonimato aumenta consideravelmente o número de roubos, nesse caso, as crianças costumam obedecer mais quando têm seus nomes perguntados ou mostram seus rostos sem fantasia; 2- As crianças costumam roubar mais doces quando estão em grupo do que quando estão sozinhas, porque se sentem protegidas e compelidas a agir erradamente.

Esses dois vetores, grupo e anonimato, são constante foco de pesquisas que trazem indícios de que as pessoas costumam se comportar de forma diferente quando perdem o senso de identidade pessoal e que essa perda acontece principalmente em situações em que há prevalência do grupo ou do anonimato.

O poder do grupo

Quando o pesquisador Muzafer Sherif propôs o experimento “A caverna dos ladrões”, 22 meninos de 11 anos foram levados para um acampamento no Oklahoma. Esses meninos foram divididos em dois grupos e na primeira semana só puderam se relacionar com quem fazia parte do seu próprio time criando bandeiras, um nome, gritos de guerra e uma verdadeira identidade grupal.

Quando os dois grupos foram autorizados a interagir, não demorou muito para que as hostilidades começassem. Muito rapidamente, a aversão de um grupo a outro evoluiu de xingamentos e músicas pejorativas para se negarem a comer no mesmo ambiente.

Não havia nada que pudesse discernir os meninos de um grupo para o outro. Todos tinham a mesma idade, vindos de ambientes parecidos e inseridos em uma realidade praticamente igual, mesma cor e raça. Chama atenção que tenha sido o fato de estarem em grupos separados que constantemente tinham que competir em gincanas que passou a inflar o ego dos times fazendo-os se sentirem superiores aos outros e tentando desmerecer os oponentes sempre que possível.

Nenhum comportamento humano vem de uma só motivação, mas de vários fatores que confluem para o gerar. Nesse sentido, é interessante notar que podemos ser capazes de amar e odiar, elogiar ou desmerecer, pessoas, grupos ou ideias se isso for necessário para protegermos nós, nossos ideais ou nosso grupo.

É fato que preferimos lidar com pessoas que concordem conosco, ler matérias que afirmam as nossas verdades e não é novidade que os algoritmos das redes sociais fazem essa filtragem melhor do que ninguém.

Também não é novidade que fazer parte de um grupo faz parte de quem somos enquanto humanos. Estar rodeado de pessoas que te protegerão, te ajudarão, endossam suas verdades e te veem como um verdadeiro parceiro faz as pessoas se sentirem poderosas e prontas para enfrentar a realidade difícil do mundo real. Nesse sentido, fazer parte de uma comunidade que nos acolha e nos dê motivação evita que tenhamos que questionar nossas crenças, seja essa comunidade uma célula da igreja ou uma célula terrorista.

Você está conectado

O surgimento da internet causou, em quem viveu essa época, extremo otimismo. Acreditava-se que seria possível unir os distantes, que o nível gigantesco de informação disponível nos faria uma geração de grandes pensadores e que rapidamente teríamos um avanço tecnológico digno dos filmes de ficção científica.

O que aconteceu não foi bem o que se esperava. A facilidade de transmitir as opiniões e informações em velocidade recorde ajudou a demonstrar que o lado ruim do ser humano também teria seu espaço nesse ambiente virtual.

É sabido que a internet tem uma natureza anônima que proporciona um ambiente que dá a sensação de liberdade para dizer e fazer o que se bem entende, contra quem se diz necessário, ainda mais levando em consideração que as punições para crimes online geralmente não acontecem.

O anonimato na internet é para muitos o que permite a garantia da liberdade de expressão e proteger a privacidade, que são ideias sem dúvidas importantes, principalmente se considerarmos países com governos autoritários. Além disso, ser anônimo te permite sobrepujar as desigualdades sociais, raciais, de gênero e étnicas.

Entretanto, como sugerem os estudos, o anonimato pode instigar comportamentos antissociais e anti normativos e essas ideias não mudam quando tratamos do ambiente online. A existência do termo cyberbullying e o Marco Civil da Internet são provas concretas da necessidade de compreensão dos benefícios e malefícios dessa ferramenta e de certa regulamentação para os usuários, Estados e empresas.

O massacre social – canceladores e cancelados

O cancelamento é uma tentativa de fazer justiça social através do aniquilamento de uma personalidade que cometeu um erro. Esse tsunami de duras críticas deixa de ser um ato de desaprovação quando passam a fazer um ataque direto à reputação e à integridade moral do alvo.

Geralmente, quem cancela alguém age condenando totalmente a opinião/atitude do cancelado em tom de superioridade e não de ensinamento. Quem é linchado virtualmente tem pouca ou nenhuma chance de se explicar nem se desculpar, além de que pode ser feito baseado em informações falsas ou de maior complexidade do que aparenta. Sendo assim, o cancelado passa a viver com um carimbo que marca sua personalidade, suas relações de trabalho e sua vida pessoal. Ao cancelar, as pessoas se colocam no papel de juízes, podendo determinar o certo e errado do cancelado através de suas próprias visões da realidade.

Para o autor Daniel Goleman, o aumento de comportamentos inapropriados ou atípicos online é conceituado de “cyber desinibição” (cyberdesinhibition). Essa desinibição é onde os conceitos de grupo e anonimato se unem para permitir que haja uma massa de pessoas dos mais diversos lugares do país e do mundo criticando e por vezes, ameaçando diretamente uma única pessoa.

Criticar ferrenhamente uma opinião ou comportamento é a forma que encontramos de demonstrar quais atitudes não são mais aceitáveis em nossa sociedade. Esses comportamentos estão aliados geralmente à violência de gênero, LGBTQI+fobia, racismo e mais recentemente até à falta de cuidados com a pandemia de COVID-19.

Mas por que as pessoas gostam tanto de cancelar as outras e tornam isso um verdadeiro comportamento de manada?

Em primeiro lugar, a cultura do cancelamento aumenta o status social de quem cancela, colocando-os como superiores, melhores, mais éticos e corretos do que os cancelados. Ao mesmo tempo, o cancelamento reduz o status social do inimigo porque quem está cancelado se reduz ao erro que cometeu, ainda que tenha vivido uma vida de acertos.

Em segundo lugar, por ser uma atividade coletiva, o cancelamento aumenta os laços sociais entre os membros do grupo. Isso porque as pessoas aproveitam a solidariedade e a sensação de coletividade que cancelar alguém proporciona. Além disso, proporciona rápida recompensa social e de status, enquanto os perigos de poder ser o próximo são muito distantes e abstratos.

Na realidade, não é que não seja necessário demonstrar quais comportamentos e atitudes são completamente inaceitáveis na atualidade, mas saber qual é o limite da pressão e da sufocação social é nossa grande missão coletiva.

A fada sensata e a pressão por perfeição

Em meio ao frenesi de apontar culpados pelos comportamentos que julgamos ser errados, surge também uma figura em oposição, a “fada sensata”. Ela é uma figura mítica de alguém que nunca erra, de quem é completamente desconstruído em todas as pautas existentes.

Essa contemplação da fada sensata faz parecer que todos são obrigados a serem corretos a todo tempo e que o processo de desconstrução é fácil, natural e linear, o que não é verdade.

Todos nós temos questões com as quais não sabemos lidar, não tivemos tempo ou interesse em conhecer, não tivemos a formação necessária (já que muitas dessas pautas ainda são muito restritas ao ambiente acadêmico) ou que simplesmente somos resistentes demais para aceitar.

É necessário pensar que desconstruir não é fácil. Como já dito, colocar nossas crenças e verdades em cheque é uma missão complicada, por vezes dolorosa, que nos coloca cara a cara com nossos erros. Entrar nesse processo pode tanto gerar uma espiral de aprofundamento na desconstrução quanto uma sensação de aversão total a essas pautas.

Nós enquanto pessoas privilegiadas que somos (em primeiro lugar por sabermos ler e interpretar textos sobre temáticas como essa) sabemos que melhorar nós mesmos e nossa sociedade é uma missão, mas existem diversos impedimentos na vida das pessoas que não dão a elas a sensação de sentido nem de necessidade de se desconstruir.

Entretanto, se queremos construir uma sociedade melhor e mais coesa, é nossa missão parar de massacrar pessoas que erram. É necessário entender que cancelar as atitudes não precisa significar cancelar pessoas. Excluir socialmente essas pessoas sem se preocupar em fazê-las compreender qual foi o erro e no que podem melhorar se resume em masoquismo virtual.

Esse pensamento é necessário porque o cancelamento virtual tem efeitos no que chamamos de “vida real”. Esses efeitos vão desde perdas financeiras, contratuais e de reputação até efeitos diretos desencadeando ou aumentando a severidade de transtornos mentais chegando, em alguns casos, ao suicídio.

Não podemos deixar que o anonimato e o distanciamento da realidade, proporcionado pela interação online, nos blinde de enxergar que o que fazemos por trás do teclado pode ter efeitos maravilhosos de uma verdadeira evolução social, mas que toda vez que nos unimos para linchar, excluir, massacrar alguém online, consequências reais surgem na vida de quem amanhã pode ser você.

Alinne Ross
Redatora do blog Diário das Nações
Bacharel em Relações Internacionais pelo UNICURITIBA e atualmente pós-graduanda em História e Relações Internacionais pela PUC-PR. É redatora voluntária de política internacional para o blog Diário das Nações e editora-chefe da revista O Diário. Além disso, é pesquisadora nos temas de extremismos político e religioso e entusiasta da absorção de temas da psicologia para aumentar a efetividade das análises de conjuntura nas Relações Internacionais.