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O papel social da cultura e a quem interessa que ela não resista

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24 de setembro de 2020

Pensar em cultura em sua essência e como fatia significativa do mercado é, indiscutivelmente, refletir sobre o processo de formação de uma sociedade. A identidade de determinado grupo é fruto de uma caminhada histórica. São costumes, valores e hábitos passados de geração em geração, mas que não estão condicionados ao eterno. Podem mudar a curto, médio ou longo prazo.

E é exatamente isso o que diferencia – pelo menos deveria – o ser humano dos animais irracionais. A capacidade de enxergar novas possibilidades, experimentar o novo e respeitar o diferente.

Foi pensando nisso que, há cerca de três anos nasceu, em Curitiba, o projeto INCANTO – Instituto de Cultura, Arte e Novas Tecnologias. Depois de dez anos dando aulas de dança para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, a coreógrafa Camila Casagrande, hoje presidente da ONG, sentiu a necessidade de transformar a vida de outras pessoas.

“Foi aí que o INCANTO surgiu, com essa ideia de espalhar professores, que eram os meus alunos, para outros projetos sociais oferecendo atividades artísticas de forma regular. A partir desta virada de chave o INCANTO de fato nasceu como ONG”, conta Camila que vê na arte, de forma prática, a possibilidade de transformar valores negativos em positivos.

“A gente traz muito esta ideia de proporcionar para as crianças uma maior visão de mundo. Para que as crianças realmente entendam que elas podem ser quem elas quiserem, mesmo que a sociedade diga que não. É realmente a arte como ferramenta de humanização e de transformação social. A gente foca no desenvolvimento delas como indivíduos e não apenas como profissionais”, defende a presidente da ONG que hoje atende 510 pessoas com atividades de arte, tecnologia, inglês e esportes com o suporte de professores e artistas voluntários.

Para a jornalista, artista e professora universitária da PUC/PR Luana Navarro definir cultura é algo muito complexo, visto que a forma que se é pensada mudou bastante e por este motivo não pode ser limitada. “Particularmente, gosto de pensar a cultura na sua amplitude, entendendo que é a forma como a gente vive, como a gente se expressa, o que comemos e é claro, a acumulação simbólica de um povo”, afirma.

A mesma linha de pensamento, com base em uma sociedade plural, é defendida pelo gestor público, sociólogo e mestre em antropologia Bodhan Metchko Filho. Ele explica que tal conceito é amplo e não limitado. “A Antropologia se debruça para entender o sentido da cultura sem julgar o que o indivíduo faz em seu cotidiano dentro de uma sociedade”.

Navarro defende que a prática comum de distinguir quem tem ou não cultura é uma visão elitista e equivocada. É uma ideia que parte do campo do conhecimento técnico e do estudo formal, o que acaba separando em classes e descartando outras possibilidades. Para a pesquisadora, o mais importante é defender uma cultura que seja diversa e sem hierarquias.

Todas as pessoas têm cultura, independente de onde e da forma como elas vivem. Por isso, é preciso pensar cultura no sentido da diversidade.”

Do ponto de vista antropológico, Bodhan Metchko explica que a cultura sempre esteve presente na evolução humana como um processo de intercâmbio e de trocas. “É somente pela pluralidade cultural que uma sociedade passa a ter sentido. Eu divido algo, compartilho algo do outro no meu universo”.

Investir em cultura vai além da promoção de lazer e entretenimento para o povo. É despertar nas pessoas o senso crítico, a dúvida, o desejo por conhecimento e a conscientização política, razões estas que são suficientes para que muitos governos coloquem o setor cultural em último plano.

“A gente vai notar que governos autoritários, fascistas e mesmo ao atual governo que temos, defendem uma ideia de cultura homogênea, definidora de padrões e comportamentos. Ditar como as pessoas vão viver e olhar para o mundo. Operam no campo da arte promovendo censura e descredibilização dos artistas, como fazem também em outras áreas como a educação”, analisa Navarro.

“É pobre um governo que não investe na diversidade cultural e que não aplica políticas públicas de acordo com determinado espaço”, defende Bodhan Metchko.

Coincidência ou não, em 2019, no primeiro ano de gestão, o Governo Federal extinguiu o Ministério da Cultura, cancelou editais de produções audiovisuais, ameaçou extinguir a Agência Nacional do Cinema e, praticamente, aniquilou a Lei Federal de Incentivo à Cultura. Além, é claro, de promover recorrentes ataques aos artistas e às produções que não estivessem de acordo com a ala bolsonarista.

Quem olha este desmonte pode até imaginar que o governo segue no caminho certo, tirando da cultura para, talvez, em um mundo distante, aplicar em outras áreas. O que precisa ficar claro é que além da função social, este mercado tratado nos últimos tempos como se não tivesse importância alguma, emprega cerca de 5 milhões de pessoas direta e indiretamente e é responsável por, em média, 2,5% do PIB Nacional, segundo estimativa da Secretaria da Economia Criativa do extinto Ministério da Cultura e a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). Aproximadamente R$ 170 bilhões.

Foi fazendo coro a isso, em defesa da cultura, que o filme Bacurau – destaque do cinema nacional em 2019 e premiado em Cannes e em Berlim – teve nos créditos finais a frase: “Este filme gerou 800 empregos diretos e indiretos”.

Desde o ano passado até agora, pouca coisa melhorou para aqueles que se dedicam à cultura em suas diferentes formas. Em meio a uma pandemia, foram os primeiros a parar e devem ser os últimos a retornar. E ainda assim, sem grandes perspectivas.

A crise do setor cultural, que já não era novidade, foi agravada pela pandemia. Apesar de ter sido aprovado um repasse emergencial de R$ 3 bilhões para a área, a Lei Aldir Blanc não chegará a todos e não resolve os problemas de uma desvalorização histórica. Os desafios na retomada das atividades são grandes e preocupantes.

“Quando pensamos no cenário atual, tem a questão de como seguir com as suas profissões, como as pessoas vão se manter. E o outro desafio é como monetizar colocando o trabalho na web”, analisa a artista que propõe uma reflexão sobre como o acesso à cultura tornou-se necessário em meio à pandemia.

Além da diminuição da violência, da inclusão social, da conscientização política, e do fortalecimento da cidadania, o momento crítico pelo qual o mundo passa reflete a importância de investimentos e da democratização do acesso.

“Imaginem este momento de pandemia se as pessoas não tivessem acesso aos filmes, às músicas. O que seria das pessoas? No fundo, mesmo as pessoas que não estão questionando esta importância, elas sabem o quanto a cultura e as produções culturais são importantes da vida de qualquer um”, finaliza Luana.

É diante deste cenário de pandemia, distanciamento e incertezas que a cultura, apesar de toda a desvalorização governamental, tem se mostrado um fôlego de esperança para as pessoas. Esperança de educação, de um futuro melhor e de uma sociedade mais justa. A resistência e a luta por reconhecimento são antigas, legítimas e continuarão neste e em governos futuros. Neste que claramente trabalha contra a classe, e em outros que terão a responsabilidade de solucionar os diversos problemas criados.

Problemas como a desigualdade social, a intolerância, o desrespeito ao diferente, o negacionismo e a crença em uma verdade absoluta que, claramente, não existe. Cultura educa. Cultura salva vidas. Cultura salva almas.

João Vieira
Assessor de Comunicação Parlamentar
Ator e jornalista pela Universidade Positivo. Passou pela comunicação da prefeitura de Curitiba e do Governo do Paraná. Trabalhou como repórter de Cultura a apresentador na TV Educativa do Estado. Foi repórter e apresentador na TV da Assembleia Legislativa do Paraná e atualmente trabalha como assessor de comunicação parlamentar.